Paula Mastroberti
arte & letra
Professora do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Bacharel em Artes Plásticas - Habilitação em Desenho (UFRGS, 1985)
Doutora em Letras - Teoria da Literatura: Literatura Infantil e Juvenil, Leitura e Ensino (PUCRS, 2011)
Artista plástica e gráfica, Escritora.
Reversões
A Série de livros Reversões foi publicada pela Editora Rocco (Rio de Janeiro, Brasil), entre 2004 e 2010. É uma tetralogia gráfico-literária inspirada em quatro obras clássicas da literatura mundial: Fausto, de Johann Von Goethe, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, Odisseia, de Homero e Hamlet, de William Shakespeare. São de minha autoria o texto, as ilustrações e design gráfico. Heroísmo de Quixote foi vencedor do Prêmio Jabuti em 2006.
ANGÚSTIA de FAUSTO
“De cara estranhei meu reflexo. É verdade que eu não andava me dando muita bola, e meu corpo meio que seguido me estorvava com seu peso me ancorando ao mundo.Descobri-me dos lençóis. É, alguma coisa tinha mudado. Primeiro eu pensei que fosse o cabelo. Também, mas não era só isso. A pele, os olhos… Tudo tinha – não sei como explicar – tudo tinha muita vida, se é que dá pra entender.Tirei a camisola do hospital, fiquei nu. Onde foram parar todos aqueles hematomas? Eu estava muito magro, é verdade, mas – a cor. O desenho dos músculos, as formas. Minhas mãos!Fiquei como bobo olhando para elas. Belas mãos, firmes como há muito não eram as minhas! Os dedos longos, ágeis, como devem ser os dedos de um bom guitarrista.(…) Espere aí. Tem algo estranho. O que é? Não está definido. É como um vácuo, parece um rasgo na atmosfera desse lugar.- Ah, percebeste?Agora não, que diabos…- Epa! Não estou para os teus vanilóquios, Fausto! Vanil…! Tá, mas agora não. Eu estou tocando, pô! Engatei uma nova música. Minha guitarra solta um grito rouco, feito de três acordes poderosos. A platéia inteira grita em resposta, é um dos meus maiores sucessos. A platéia inteira – não.- Mas…o que te importa isso?Psiu! Eu sei. Eu sinto. Algo me repele, lá no meio. O que será – anjos?Vou tocando, enquanto os anjos sobrevoam tudo, à procura daquilo que eu quero identificar. Eu olho para todos os rostos e nenhum. Mas, de repente, cara, eles me apontam uma menina. Não está ligada, na verdade está mesmo louca que o show termine de vez, ela quer ir embora. O que é que está fazendo aqui?Eu continuo tocando, mas meus olhos se fixam naquele rosto que não me obedece.” (ANGÚSTIA DE FAUSTO, trechos. Editora Rocco, 2004.)
HEROÍSMO de QUIXOTE
“Mas eu juro que eu pensava que era tudo alucinação desses drogados aí do bairro, antes de ver a criatura em pessoa. Como é que ele era? Como é que ele era… Difícil de a gente olhar pra ele sem sentir uma coisa por dentro, dá vontade de rir, mas assusta ao mesmo tempo, porque ele tem uns olhos esquisitos, olha pra gente de um jeito. A Elecir, que é de religião, disse que ET, que nada, isso daí pode ser que tu tenha visto um exu ou um espírito desencarnado. Não sei. Sou cética. Tu pode confiar em mim, por causa disso, porque, olha, eu não ia acreditar nunca, se eu não tivesse visto.Ah é, foi assim: eu tava voltando de noite, que eu trabalho no shopping até às dez, e meu ônibus larga lá na faixa, então eu tenho que descer três quadras à pé, no escuro. Um perigo. Meu irmão sempre me espera na parada, mas naquele dia não deu, porque ele tava fazendo serão. Aí eu vinha descendo com o coração na boca quando veio um bando pra cima de mim, uns quatro ou cinco. Me borrei, é um assalto, ou pior. Foram me cercando, fazendo piadinha, bolinando dali e daqui. Eu séria, muda, apressei o passo, tentava fazer de conta que não tava acontecendo pra ver, né, se eles desistiam. Tavam tudo maconhado, é ruim! Pensei, não vai ter jeito, mas eu tava com medo de reagir, eles podiam ficar com raiva, ia ser muito pior. Aí se deu a aparição.Mas olha, foi assim que nem uma aparição de fantasma, mesmo, que nem nos filmes. O homem brilhava no escuro, eu juro, e os olhos dele também, assim, que nem os de um gato, já viu? Os malandros se assustaram, mas foram de metidos pra cima dele. Pensei, é agora, Francineide, aproveita, foge, mas sabe que as minhas pernas não saíam do chão! A aparição – juro-por-deus, sem mentira nenhuma, soltou um raio luminoso – olha, eu não tô brincando, já disse que eu sou cética – que cegou os guris e botou eles pra correr sem encostar um dedo. Depois me viu, me deu um sorriso coisa mais linda de anjo e falou assim, com uma voz devagarzinha, do além do mundo: Você ainda está aí?Me deu um pavor – sei lá o que era aquela criatura! E eu saí correndo, nem agradeci.Depois é que eu raciocinei o que é que tinha me acontecido. Olha, ele existe mesmo, pode confiar e registrar aí. Eu sou cética, só acredito vendo”. (HEROÍSMO DE QUIXOTE, trechos. Editora Rocco, 2005.)
RETORNO de ULISSES
“Já dá pra sentir, penetrando narinas adentro, o cheiro de excreções humanas decompostas sob os pés: urina, merda, escarro e porra velha. logo adiante, seres vulturinos dobrados sobre os bancos, numa conversa ora secreta sob os fachos de luz incertos dos faróis, ora escandalosa e agressiva sob o pisca-pisca colorido do comércio duvidoso ao redor. Por trás dos tentáculos sinuosos que se espalham a partir do tronco das enormes figueiras, saltam diabretes pequenos e imundos. Procuram o celular – quem não tem um? Você – você não tem. Azar o seu, porque, com raiva – pan! – soco na boca – crac! – pancada se estilhaça – sua cabeça – no chão – desnorteado – punc! – pontapé nas costas. Feito. Você é encontrado ali, Estéfano, seminu e cagamijado de medo, mal respirando de estupefação.
E, tremendo violentamente, cacos de garrafa e sangue misturados no cabelo, escoriações pelo corpo rijo de choque, Estéfano, filho único classe-média de mãe intelectual-artista-superprotetora e pai-publicitário-de-sucesso-ausente , mal ouve a voz e enxerga o rosto de quem o carrega até a van que o levará, sob a trilha monossônica de uma sirene, direto para o Hospital de Pronto Socorro Municipal.
E é isso, meu menino: esse jogo não é virtual e nem a dor, aqui não se soma nem se perde pontos.
Game over.” (RETORNO DE ULISSES, trechos. Editora Rocco, 2007.)
LOUCURA de HAMLET
“Horácio. Tô me sentindo fraco. Tão cansado. Talvez eu precise mesmo dormir um pouco, pra recuperar as energias. Eu não me importo, EU NÃO ME IMPORTARIA MESMO, de dormir, dormir de verdade. Se eu pudesse, Horácio. Se eu conseguisse. Se fosse só DORMIR. Mas dormir é SONHAR. Se eu apagasse, se eu desaparecesse — no sono — sem ter noção — nunca mais abrir os olhos, ver o mundo outra vez. Mas tem os SONHOS, tu sabe. OS FANTASMAS RONDAM DENTRO DELES. Dormir e acordar em Harvard. Tommy em Harvard, tá ligado? Nunca mais ouvir ou falar outra palavra que não seja em inglês. Preciso treinar se quiser estudar em Harvard. Tenho uma bolsa — praticamente garantida. Nenhum bicho de estimação pra tomar conta, nem irmã. Nem mãe. Tu sabe. O Osso já é. Ganho do Fortim. A boca não se extermina — engole outro dono. Horácio, onde é que tu anda? Eu não tenho mais celular. Eu tô sendo traduzido, viu — o tempo todo. Cuidado, isso aqui também será uma TRADUÇÃO. Porque agora eu só penso e falo em inglês, tá ligado? Sempre vão adulterar tudo o que eu disser. Horácio, a verdade tá toda contigo. Só tu tá inteirado da minha HISTÓRIA. Mas e daí se tu contar a verdade? Quem vai acreditar nela? Tommy” (LOUCURA DE HAMLET, trechos. Editora Rocco, 2010.)